São João da cruz

João da CruzO.C.D. (em castelhanoJuan de la CruzFontiveros1542 – Úbeda14 de dezembro de 1591) foi um místicosacerdote e frade carmelita espanhol venerado como santo pelos católicos. Nascido em Fontiveros, em Castela a Velha, foi um dos mais importantes expoentes da Contrarreforma.

Grande reformador da Ordem Carmelita, é considerado, juntamente com Santa Teresa de Ávila, o fundador dos Carmelitas Descalços. João também é conhecido por suas obras literárias e tanto sua poesia quanto suas investigações sobre o crescimento da alma são consideradas o ápice da literatura mística e se destacam entre as grandes obras da literatura espanhola.

João da Cruz foi canonizado em 1726 por Bento XIII e é um dos Doutores da Igreja Católica Apostólica Romana.

Biografia

Primeiros anos

João da Cruz nasceu Juan de Yepes y Álvarez[3] numa família de conversos (descendentes de muçulmanos ou judeus convertidos ao cristianismo) em Fontiveros, perto de Ávila, uma cidade de aproximadamente 2 000 habitantes na época.[4][5] Seu pai, Gonzalo, trabalhava como contador para parentes mais ricos que trabalhavam no comércio da seda. Porém, em 1529, depois de se casar com Catalina, uma órfã de classe inferior, Gonzalo foi rejeitado pela família e acabou sendo forçado a trabalhar com a esposa como tecelão.[6] Ele morreu em 1545, quando João tinha por volta de sete anos.[7] Dois anos depois, o irmão mais velho de João, Luís, morreu, provavelmente por má nutrição resultado da penúria em que vivia a família depois da morte do principal provedor. Depois disso, Catalina mudou-se com João e Francisco, seu outro filho ainda vivo, para Arévalo em 1548 e, três anos depois, para Medina del Campo, onde finalmente conseguiu um emprego como tecelã.[8][9]

Em Medina, João entrou numa escola para cerca de 160[10] crianças pobres – geralmente órfãos – e recebeu uma educação básica, principalmente a doutrina cristã, além de alguma comida, roupas e um lugar para viver. Lá, foi escolhido para servir como acólito num mosteiro vizinho de freiras agostinianas.[8] Nos anos seguintes, João trabalhou no hospital e estudou humanidades na escola jesuíta entre 1559 e 1563; a Companhia de Jesus era uma organização recém-criada na época, fundada apenas alguns anos antes por Santo Inácio de Loyola. Em 1563,[11] João entrou para a Ordem Carmelita e adotou o nome de “João de São Matias”.[8]

No ano seguinte (1564),[12] professou seus votos como carmelita e viajou para Salamanca, onde estudou teologia e filosofia na prestigiosa universidade da cidade (na época, uma das quatro grandes da Europa, juntamente com ParisOxford e Bolonha) e no Colegio de San Andrés. A estadia teria poderosa influência sobre suas obras posteriores, pois lecionava ali Frei Luis de León (estudos bíblicos: exegesehebraico e aramaico), um dos mais destacados estudiosos em seu campo e o autor de uma controversa tradução do Cântico dos Cânticos para o espanhol (na época, traduções da Bíblia para outras línguas eram proibidas na Espanha).

Desenho de Cristo crucificado visto “de cima” de João da Cruz que inspirou Salvador Dalí a pintar seu “Cristo de São João da Cruz” (que pode ser visto aqui).

Reforma de Teresa de Ávila

João foi ordenado sacerdote em 1567 e deixou clara sua intenção de juntar-se à estrita ordem dos cartuxos, que o atraía por encorajar a contemplação solitária e silenciosa. Uma viagem de Salamanca até Medina del Campo, provavelmente em setembro do mesmo ano, mudou seus planos.[13] Em Medina, João encontrou-se com uma carismática freira carmelita chamada Teresa de Jesus, que estava na cidade para fundar seu segundo convento.[14] Ela contou-lhe sobre seus projetos para reformar a Ordem Carmelita, que visavam purificá-la ao reintroduzir a observância da regra original, de 1209, que havia sido relaxada pelo papa Eugênio IV em 1432.

De acordo com ela, a maior parte do dia e da noite deveria ser dedicada à recitação da liturgia das horas, aos estudos e leituras devocionais, à celebração da missa e a períodos de contemplação solitária. Para os frades, haveria ainda um tempo dispendido na evangelização da população vizinha ao mosteiro.[15] A abstinência completa de carne e longos períodos de jejum deveriam ser observados a partir da Festa da Exaltação da Cruz (14 de setembro) até a Páscoa. Haveria ainda longos períodos de silêncio, especialmente entre as completas e a prima. As roupas deveriam ser mais rústicas e mais simples do que as que passaram a ser utilizadas depois de 1432.[16] Além disso, todos deveriam obedecer à injunção contra o uso de calçados (que também havia sido relaxada em 1432) e foi desta última observância que os seguidores de Teresa entre os carmelitas passaram a ser chamados de “descalços”, distinguindo-os dos frades e freiras não reformados.

Teresa pediu a João que desistisse dos cartuxos para segui-la. Depois de um ano final estudando em Salamanca, em agosto de 1568 João viajou com Teresa de Medina para Valladolid, onde ela planejava fundar outro convento. Depois de passar algum tempo com Teresa ali, aprendendo mais sobre esta nova forma de vida carmelita, em outubro do mesmo ano, acompanhado pelo frade Antonio de Jesús de Heredia, João partiu para fundar um novo mosteiro para frades, o primeiro a seguir os princípios de Teresa. Eles receberam permissão para utilizar uma casa em ruínas em Duruelo (no meio do caminho entre Ávila e Salamanca), que havia sido doado a Teresa. Em 28 de novembro de 1568, o mosteiro[17] foi finalmente inaugurado e, no mesmo dia, João mudou seu nome para “João da Cruz”.

Logo depois, em junho de 1570, os frades se mudaram de sua sede em Duruelo, que estava pequena, para a cidade vizinha de Mancera de Abajo. Depois, João mudou-se novamente para fundar uma nova comunidade em Pastrana (outubro) e outra em Alcalá de Henares, que tornar-se-ia uma casa de estudos dedicada ao treinamento de seus frades. Em 1572,[18] João foi para Ávila a convite de Teresa, que era na época prioresa do Mosteiro da Visitação na cidade, em 1571, e tornou-se o diretor espiritual e confessor dela, das 130 freiras que viviam no mosteiro e da população da cidade.[8] Em 1574, João acompanhou Teresa quando numa viagem para fundar um novo mosteiro em Segóvia, retornando a Ávila em seguida. É provável que ele tenha permanecido ali até 1577.[19]

Em algum momento entre 1574 e 1577, enquanto rezava numa cabana com vista para o santuário, João teve uma visão de Cristo crucificado que o levou a criar seu famoso desenho visto “de cima” (ou “do alto”). Em 1641, este desenho foi emoldurado em Ávila e, em 1951, inspirou o artista Salvador Dalí a pintar “Cristo de São João da Cruz“.

Auge das tensões com a Ordem Carmelita

O período entre 1575 e 1577 assistiu ao aumento das tensões entre descalços e carmelitas espanhóis por causa das reformas de Teresa e João. Desde 1566, elas vinham sendo supervisionadas por visitantes canônicos da Ordem dos Pregadores (dominicanos), um em Castela e outro na Andaluzia, com amplos poderes: podiam mudar os membros de uma casa para outra e até mesmo de uma província para outra, podiam ajudar superiores religiosos em suas funções e nomear outros, entre carmelitas ou dominicanos. Em Castela, o visitante era Pedro Fernández, que prudentemente balanceou os interesses de descalços e não reformados.[20]

Na Andaluzia, mais para o sul, porém, onde o visitante era Francisco Vargas, as tensões aumentaram por causa de sua visível preferência pelos frades descalços. Francisco pediu-lhes que fundassem mosteiros e conventos em várias cidades, contradizendo explicitamente as ordens do prior geral carmelita, que era contra a expansão dos descalços na região. Como resultado, o capítulo geral carmelita se reuniu em Placência, na Itália, em maio de 1576 para tratar destes eventos na Espanha, que ameaçavam sair do controle. A decisão foi suprimir totalmente as casas descalças.[8] Kavanaugh (1991) afirma que o objeto seria apenas as casas da Andaluzia. E. Allison Peers, Complete Works, Vol. I, p. xxvii (1943) afirma que seriam todos os mosteiros descalços com exceção de dois.

Contudo, a medida não foi imposta de imediato. Primeiro por que o rei Filipe II apoiava algumas das reformas de Teresa e não concedeu a permissão necessária para que a ordem de fechamento fosse aplicada com rigor. Além disso, os descalços contavam também com o apoio do núncio papal no Reino da Espanha, Nicolò Ormaneto, bispo de Pádua, que podia, em última instância, visitar e reformar qualquer ordem religiosa em sua jurisdição. Depois de receber um pedido de intervenção dos descalços, Ormaneto substituiu Vargas como visitante na Andaluzia (onde o conflito começou) por Jerónimo Gracián, um sacerdote da Universidade de Alcalá, que, na realidade, era um carmelita descalço.[8] Em janeiro de 1576, João foi preso em Medina del Campo por frades não reformados, mas acabou solto, depois da intervenção do núncio.[8] Porém, quando Ormaneto morreu, em 18 de junho de 1577, João ficou sem seu maior aliado e seus adversários aproveitaram a oportunidade.

Anos finais e reconhecimento

Relíquias

Sepulcro em Segóvia, Espanha

Sepulcro em Úbeda, Espanha

Na noite de 2 de dezembro de 1577, um grupo de carmelitas contrários às reformas invadiram a casa de João em Ávila e o prenderam. Ele havia recebido ordens de alguns superiores contrários às suas ideias a deixar Ávila e voltar para sua casa original, mas ele se recusou alegando que seu trabalho havia sido aprovado pelo núncio espanhol, uma autoridade superior,[21] o que resultou em sua prisão. Ele foi levado para um mosteiro em Toledo, que era, na época, o mosteiro carmelita mais importante em Castela, abrigando provavelmente uns 40 frades.[22][23] João foi acusado de desobedecer às ordens de Placência e, apesar de seus argumentos, acabou sendo condenado à prisão. Encarcerado no mosteiro, João foi mantido sob um regime brutal que incluía uma surra de chicote em público ao menos uma vez por semana e um isolamento completo numa cela minúscula (3m x 2m) que mal abrigava seu corpo. Com exceção das raras ocasiões nas quais recebia permissão para utilizar uma lamparina, João era obrigado a subir num banco para conseguir ler seu breviário utilizando a luz que escapava do cômodo vizinho através de um buraco na parede. Ele não podia trocar de roupas e era alimentado apenas com pão, água e restos de peixe salgado.[24] Foi neste período que João compôs grande parte de seu famoso poema “Cântico Espiritual” (além de outros menores) em papel fornecido por um outro frade que era encarregado de vigiar sua cela.[25] João finalmente conseguiu escapar nove meses depois, em 15 de agosto de 1578, através de uma pequena janela que existia na cela vizinha depois de conseguir soltar as dobradiças da porta de sua cela.

Depois de um período de convalescença, primeiro entre as freiras de Teresa em Toledo e, depois de seis semanas no Hospital de Santa Cruz,[26] João retomou suas reformas. Em outubro de 1578 ele se reuniu em Almodóvar del Campo com outros defensores da reforma, cada vez mais conhecidos como “carmelitas descalços”. Lá, parte como resultado da resistência de outros carmelitas, os rebeldes decidiram solicitar do papa a separação formal da nova ordem.[27]

Nesta reunião, João foi nomeado superior de El Calvario, um mosteiro isolado de cerca de trinta frades a dezoito quilômetros de Beas, no alto das montanhas da Andaluzia.[28] Nesta época, ele conheceu Ana de Jesús, a superiora das freiras descalças da cidade, por conta de suas visitas semanais (sempre aos sábados) à cidade. Em El Calvario, João compôs a primeira versão de seus comentário sobre o “Cântico Espiritual”, provavelmente a pedido das freiras de Beas.

Em 1579, João mudou-se para Baeza, uma cidade de cerca de 50 000 habitantes, para servir como reitor de uma nova escola, o Colegio de San Basilio, que visava apoiar os estudos dos carmelitas descalços da Andaluzia. O colégio foi inaugurado em 13 de junho de 1579 e João permaneceu no cargo até 1582, dispendendo boa parte de seu tempo na função de diretor espiritual dos frades e da população local.

O ano de 1580 foi muito importante para a resolução do conflito com os carmelitas. Em 22 de junho, Gregório XIII assinou um decreto intitulado Pia Consideratione autorizando a separação. O frade dominicano Juan Velázquez de las Cuevas foi encarregado de fazer valer a decisão papal. No primeiro capítulo geral da nova ordem, realizado em Alcalá de Henares em 3 de março de 1581, João da Cruz foi eleito um dos “definitores” da comunidade e foi ele quem escreveu a primeira constituição da ordem. Na época (1581), havia 22 casas, 300 frades e 200 freiras na ordem dos Carmelitas Descalços.[29]

Em novembro de 1581, João foi enviado por Teresa para ajudar Ana de Jesús na fundação de um convento em Granada. Chegando à cidade em janeiro do ano seguinte, ela fundou imediatamente o convento enquanto João seguiu para o mosteiro masculino de Los Martires, do lado de Alhambra, tornando-se o prior em março em 1582.[30] Foi ali que ele soube da morte de Teresa em outubro do mesmo ano.

Em fevereiro de 1585, João viajou para Málaga e fundou ali um outro convento descalço. Em maio, no capítulo geral realizado em Lisboa, João foi eleito vigário provincial da Andaluzia, um cargo que exigia que ele viajasse com frequência, visitando anualmente as casas da ordem na região. Nesta época, ele fundou sete novas casas e viajou por – estima-se – 25 000 quilômetros.[31]

Em junho de 1588, João foi eleito terceiro conselheiro do vigário-geral dos Carmelitas Descalços, padre Nicolas Doria. Para exercer a função, teve que se mudar para Segóvia, em Castela, onde acumulou também a função de prior do mosteiro local. Em 1590/91, depois de discordar da reforma de Doria da liderança da ordem, João foi demitido e enviado por ele, em junho, para um mosteiro isolado na Andaluzia chamado La Peñuela. Lá, caiu enfermo e teve que viajar para o mosteiro em Úbeda para se tratar. Sua condição se deteriorou e João morreu ali em 14 de dezembro de 1591, vitimado por uma erisipela.[27]

Veneração

Na manhã seguinte à morte de João, um grande número de moradores de Úbeda foi ao mosteiro para ver o corpo; na confusão, muitos conseguiram levar partes de seu hábito como relíquia. O corpo foi inicialmente enterrado ali, mas, a pedido do mosteiro de Segóvia, acabou sendo secretamente levado para lá em 1593. A população de Úbeda, descontente com a mudança, enviou mensageiros para pedir ao papa a devolução do corpo ao túmulo original e Clemente VIII, impressionado pelo pedido, ordenou em 15 de outubro, isso fosse feito. No fim, numa solução de compromisso, os superiores da ordem decidiram que o mosteiro em Úbeda receberia uma perna e um braço do corpo que estava em Segóvia (o outro braço de João havia sido removido quando o corpo passou por Madrid em 1593). Uma mão e a outra perna permaneceram em exibição num relicário no Oratório de San Juan de la Cruz de Úbeda, um mosteiro construído em 1627 e ligado ao principal mosteiro carmelita descalço da cidade, fundado em 1587.[32]

A cabeça e o torso permaneceram em Segóvia, onde foram venerados até 1647, quando foram novamente enterrados por ordens de Roma, que desejava evitar a veneração de restos mortais sem aprovação oficial. Na década de 1930, os restos de João foram novamente desenterrados e estão ainda hoje abrigados num sarcófago de mármore sobre um altar especial construído, na época, numa capela lateral.[32]

Os esforços para beatificar João começaram com a coleta das informações sobre sua vida entre 1614 e 1616 e ele foi beatificado em 1675 por Clemente X. Em 1726, ele foi canonizado pelo papa Bento XIII. Quando sua festa foi adicionada ao Calendário Geral Romano, em 1738, o dia escolhido foi 24 de novembro por que a data de sua morte estava impedida por conta da então existente da oitava da Festa da Imaculada Conceição.[33] Este obstáculo foi removido em 1955 e, em 1969, Paulo VI mudou a data para o “dies natalis” (“nascimento no céu”) do santo, 14 de dezembro.[34] A Igreja da Inglaterra comemora João como “Professor da Fé” na mesma data. Em 1926, ele foi declarado Doutor da Igreja pelo papa Pio XI depois de uma opinião definitiva dada por Reginald Garrigou-Lagrange O.P., professor de filosofia e teologia da Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino em Roma[35] e João passou a ser conhecido também como “Doctor Mysticus”.

Edições de suas obras

Suas obras foram publicadas pela primeira vez em 1618 por Diego de Salablanca. As divisões numéricas da obra, ainda utilizadas pelas edições modernas do texto, foram introduzidas por Salablanca (elas não existiam nos originais de João) para ajudar a tornar a obra mais manuseável para o leitor.[36] Esta edição não traz o “Cântico Espiritual” e também omite ou adapta algumas passagens, provavelmente por medo de infringir alguma regra da Inquisição.

O “Cântico Espiritual” foi incluído pela primeira vez na edição de 1630, produzida pelo frade Jeronimo de San José, em Madri. Esta edição foi muito utilizada por editores posteriores e as dos séculos XVII e XVIII passaram a, gradualmente, incluir alguns poemas e cartas adicionais.

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